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17/05/2024ㅤ Publicado às 09:39

*Por Dora Diniz, conselheira do CAU/SE

Recebo o convite para escrever um artigo crítico sobre as Calçadas de Aracaju e começo a refletir sobre o que aprendemos com o passar desses anos, quase duas décadas contadas a partir da publicação da Cartilha Calçada Livre, em 23 de abril de 2007. Tempo de descobertas e experiências sobre o tema da acessibilidade, pois antes esse tema não era apresentado ou discutido nos cursos de arquitetura e urbanismo do nosso país. Pode-se, então, afirmar que é uma questão relativamente nova no Brasil, que surge na década de 80, quando da publicação da NBR 9050/1985, a primeira norma que tratava da Adequação das Edificações e do Mobiliário Urbano à Pessoa Deficiente, e também tratada na Constituição de 1988 que garantiu o direito de ir e vir para todos os cidadãos. Mas foi, de fato, a partir dos anos 2000 que o tema se torna mais “visível” e fundamental para a nossa profissão, quando promulgado o Decreto nº 5.296/2004, regulamentando as Leis Federais nº10.048 e 10.098 de 2000, além de que citava em seu conteúdo a norma NBR 9050/2004 e tornava obrigatório o seu uso. Daí em diante o termo acessibilidade é definido de uma forma bem mais ampla como: “possibilidade e condição de alcance, percepção, entendimento para a utilização com segurança e autonomia de edificações, espaço, mobiliário, equipamento urbano e elementos” (ABNT, 2004, p. 2).

Grifo acima a palavra ESPAÇO, porque essa grande conquista vai dar um novo rumo de como devemos tratar as cidades em todos os seus aspectos e escalas, desde um pequeno mobiliário urbano até os grandes locais de circulação e de lazer como seus parques, praças, calçadões e calçadas.

Então, algum tempo depois, essa obrigatoriedade entra em discussão na cidade, liderada ativamente pelos Conselhos Estadual e Municipal das Pessoas com Deficiência, apoiados pelo Ministério Público, ganhando um destaque cada vez maior, já que enfim essa luta se tornou lei a ser cumprida. E os técnicos dos órgãos da Prefeitura Municipal, responsáveis por garantir tais direitos, logo são convocados para entender e resolver essas questões tão amplas, e em relação às calçadas de Aracaju esse debate começa no início de 2007, e a grande pergunta era como solucionar as calçadas da cidade que, em geral, são muito estreitas, irregulares e com tantos obstáculos, móveis e fixos, ao livre caminhar. Fomos estudar detalhadamente a NBR 9050, como também padrões de calçadas já elaborados em algumas cidades do país. Logo as dúvidas começaram a surgir, tanto pela norma ser muito geral e não esclarecer alguns pontos em relação principalmente aos pisos táteis e usos, como a nossa realidade ser bastante hostil ao pedestre, calçadas com larguras praticamente incompatíveis com o ideal do livre ir e vir. Mas também não poderia ser diferente quando se conhece a história da fundação de nossa capital, baseada no Plano de Pirro, em um local inundado e em uma província sem muitos recursos. Como as exigências do século XXI são bem maiores do que se poderia imaginar em meados do século XIX, a pergunta era como compatibilizar essa lei tão essencial para o viver contemporâneo nessa trama da cidade já consolidada pelo tempo? E ainda sem grandes possibilidades de ampliação de espaços para pedestres com vias dentro de um limite de largura? É uma ilusão não pensar que enfim fomos dominados pela cultura do automóvel e com o passar das décadas vimos Aracaju se espraiar cada vez mais em todas as direções, de modo claramente segregada, e “abandonando” aos poucos os bairros com maior infraestrutura, como o Centro e São José, para ocupar espaços vazios, ação que acarreta diversos problemas que enfrentamos hoje. E essa reversão de sistema modal de transporte é algo muito importante a se pensar e estruturar só que mais a longo prazo. E precisávamos de ações mais imediatas!

O primeiro passo foi retirar os veículos que ocupavam literalmente o espaço do pedestre, um desrespeito total, e trazer para a população a urgência de uma nova consciência de calçadas e passeios para pessoas. E acredito que vencemos nesse ponto ao lembrar da situação caótica de anos atrás! E sem dúvida alguma, começamos a compreender a essência desses espaços, configurando claramente a sua obrigatoriedade, havendo muitos terrenos vazios sem qualquer calçada construída, e as três faixas das calçadas: a de serviço, a de acesso, quando possível, e principalmente a faixa do pedestre imprescindível de ter a superfície regular e sem desníveis, sem vibrações, ainda executada com material de fácil reposição e não escorregadio. Ressalto aqui que dois pontos sempre foram os mais conflituosos de soluções: manter a faixa livre sem quaisquer obstáculos, como postes, árvores…, por causa das larguras reduzidas, e resolver as diferenças de níveis longitudinais das calçadas, ou seja, entre lotes de uma quadra. Casos tão recorrentes em nossa capital, qualquer que seja o bairro, da zona norte à zona sul, espaços ocupados tanto pela população de mais baixa renda como pela mais elitizada, sem diferenciações, já que esse traçado urbano foi sempre limitado.

Daí, então, em alguns meses elaboramos a Cartilha Calçada Livre, aprovada em audiência no Ministério Público com parâmetros e modelos de como as calçadas deveriam ser executadas. Avançamos? Acertamos? Sérias reflexões que se impõem neste momento, inclusive pela atualização recente da NBR 16537, em janeiro de 2024. Inclusive se deve ressaltar aqui que essa primeira norma específica sobre sinalização tátil só surgiu em 2016, depois de doze anos de incertezas, tantas dúvidas e conflitos sobre como construir cidades acessíveis e reais, porque nesse período estávamos trabalhando muito além do desenho em papel.

Respondendo às nossas reflexões, acreditamos que, em parte, sim! Tentamos fazer o melhor, éramos idealistas, com sonhos de se ter realmente uma cidade paras pessoas, e que de calçada em calçada, e com o apoio de cada proprietário de um lote em Aracaju, alcançaríamos aos poucos esse livre circular. Conseguimos executar trechos pontuais de calçadas, muitas vezes por cobranças diretas de necessidade de regularização, e alguns outros por serem calçadas de novas construções que já deveriam seguir o padrão. Claro também que houve exemplos raros de adaptação voluntária, cidadãos que entendiam essa urgência de se caminhar pela cidade. Continuamos também com vários trechos sem qualquer calçamento, apesar de ser por lei obrigatório. Com essas obras conseguimos adquirir experiências práticas, perceber limitações dos modelos e entender que eram intervenções mais complexas do que o entendimento inicial, porque envolviam diversos elementos, interesses e atores sociais.

Estávamos nesta trajetória quando em janeiro de 2012, por questionamentos de alguns arquitetos e dos conselhos referentes às soluções adotadas na Cartilha, principalmente quanto ao uso e a posição adotada para o piso tátil de alerta, o MP convocou audiências para discussões entre as partes interessadas. Como o grupo não entrava em consenso, houve uma necessidade emergencial de uma consulta com um técnico da ABNT e, em maio de 2012, a arquiteta Maria Beatriz Barboza fez uma visita a Aracaju e analisou o Projeto Calçada Livre e os modelos de calçadas sugeridos. Explicou nesse momento que não só em Aracaju, mas também em outras cidades brasileiras, não houve uma compreensão adequada de como usar a sinalização tátil e por esse motivo, entre outros, a NBR 9050 estava sendo revisada. Com algumas atualizações sobre o tema e, após um ano de discussões em reuniões semanais, realizou-se a revisão da Cartilha Calçada Livre, sendo divulgada a versão atualizada em 2013 bem mais didática e ilustrativa. Finalmente, dois a três anos depois, foi publicada a atualização da NBR 9050, versão 2015, e em 2016 a tão aguardada NBR 16537, como já explicitado acima. Fizemos alguns poucos ajustes e o Ministério Público de Sergipe, através do Centro de Apoio Operacional de Direitos Humanos – CAOp, disponibilizou o arquivo para consulta no site oficial. Tínhamos enfim aprendido algo ao longo de quase dez anos de muitos debates, acertos e equívocos, e estávamos acreditando agora estar no caminho certo, pelo menos pensamos assim. Mas nunca conseguimos publicar essa versão da Cartilha pela Prefeitura, apesar de diversas tentativas, inclusive com a promessa no 1° Diálogos Urbanos “Acessibilidade e Obras Públicas”, realizado na Emurb em agosto de 2023.

Atualmente é válida a NBR 9050/2020, que incorpora a Errata 1, de 25.01.2021, e nesta reflexão contínua parece que a história se repete, sem um ponto final, no sentido de que a norma é revisada, obviamente por consequentes aprendizagens, e sem dúvida alguma com amplas conquistas no que se refere à promoção da acessibilidade, com destaque em edifícios privados ou públicos de uso coletivo. Mas na área do urbanismo claro que também há melhorias e ressignificações, só que muito lentas e pontuais, no infinito de áreas a serem revistas, e ainda despendendo de grandes recursos.

E um ponto essencial a se pensar é que a norma me parece “distante” da realidade. Esta posição deve-se a um olhar crítico ao folhear a norma de pisos táteis, que apresenta desenhos utópicos de amplas calçadas com pisos direcionais centrais, em que permitem que pessoas circulem de modo fluido, como se vivêssemos em “cidades ideais”. Estes modelos de cidades, em grande parte teóricos, ganham força no Renascimento, tendo sido criados por filósofos e artistas que enfatizavam a construção de espaços idealizados, geometricamente definidos, nos quais ruas largas, retilíneas refletiam a harmonia de uma sociedade perfeita. E temos conhecimento de que, em pleno século XXI, as cidades são dinâmicas, surpreendentes, e finalmente enxergamos e valorizamos as diferenças, sentimos e convivemos muito bem com as irregularidades. As “imperfeições” no tecido urbano que tornam a nossa experiência única e repleta de identidades nestas vivências em espaços públicos.

Entendemos que, mesmo Aracaju na sua parte mais antiga sendo um tabuleiro de xadrez, está muito distante dessas representações em plantas baixas e perspectivas da NBR 16537, sem locar quaisquer mobiliários e equipamentos. Vale lembrar que estes são elementos reais, físicos, que não podem simplesmente desaparecer das calçadas, pois compõem e ocupam seus espaços determinados, muitas vezes tidos como “obstáculos” para se alcançar essa perfeição. Dessa maneira, como devemos continuar?

Esperamos que os arquitetos e urbanistas responsáveis pela nossa cidade, tenham atitudes ágeis, firmes e coerentes ao atender os aspectos tratados pela norma, tendo absorvido as experiências destes tantos anos, cientes também de que Aracaju tem um formato “cristalizado” em todos os seus traços, moldado no passado,  e que talvez devam ser melhor observados, porque essas calçadas, lugares contínuos e adequados, atenderam a um “desenho universal”, sem tantos detalhes nas suas superfícies, mas que respeitavam o livre caminhar. Não havia tantos veículos como na contemporaneidade, e, se pensarmos com um foco mais amplo, vemos que esse modelo de cidade nos levou a um modo de vida incoerente, que provocou fissuras em muitos sentidos, inclusive nos caminhos dos pedestres. Não podemos ser responsáveis por romper de vez esses possíveis trajetos, que podem ser intransponíveis com o passar do tempo. Não devemos retroceder o nosso olhar atento, para daqui a duas décadas ainda estarmos discutindo como melhorar as calçadas de Aracaju. É urgente a revisão e publicação da nova Cartilha Calçada Livre com formato mais prático e representações de imagens mais realistas, para auxiliar de fato na reconstrução das nossas calçadas, tanto executadas por técnicos como por cada cidadão participativo. Não seria o momento de a Prefeitura adotar algumas calçadas e também incentivar que a sociedade promova essa renovação do ir e vir?

 

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